segunda-feira, 6 de junho de 2016

Diario de bordo do Ryu Mizuno e o Kokai Shimbun

  

Kasato Maru - o diário de bordo de Ryu Mizuno

Uma caderneta de 12 cm de altura por 6 cm de largura guarda os segredos dos 52 dias de viagem do Kasato Maru. Esquecido por 90 anos no baú da viúva de Ryu Mizuno, o diário de Mizuno revela o dia-a-dia no mar. O diário está guardado no Museu Histórico Regional Saburo Yamanaka, em Bastos (536 km de São Paulo).

Diário de Ryu Mizuno
Por algum tempo eu procurei este diário, com a esperança de encontrar ali um relato interessante, rico e revelador. Infelizmente, o diário é bem banal, com poucas informações. Tudo indica que Mizuno não gostava muito de escrever. Havia muito para relatar : brigas, doenças, características de pessoas, alimentação, higiene, reclamações, ações de entretenimento, e tudo mais que poderia acontecer num caldeirão fervente de mais de 700 pessoas espremidas num pequeno barco. Mas Mizuno pecou, e fez um diário sem muito valor.
E infelizmente nenhum dos imigrantes deixou alguma coisa escrita sobre a viagem.
A tradução que segue, foi feita por Masato Ninomiya, professor da USP e tradutor oficial do imperador do Japão.

Segue a tradução do diário, texto integral :


28 de abril Terça-feira, céu limpo. O vapor zarpou às 17h55.
29 de abril Quarta-feira, céu limpo
30 de abril Quinta-feira, céu limpo. Às 10h avistou-se a ilha Suwase a estibordo, tendo o vapor seguido o seu trajeto.Pouca chuva ao entardecer.
1º de maio Sexta-feira, forte chuva pela manhã e depois céu limpo.
2 de maio Sábado, céu nublado. Avistou-se às 20h um farol giratório (Turn Abant).
3 de maio Domingo, céu límpido. Avistaram-se as ilhas Kyodai (Irmas) ao meio dia. Avistou-se a ilha Raba às 15h30. Falou-se que por alguns dias não se avistará nenhuma ilha no trajeto.
4 de maio Segunda-feira, céu límpido. O calor está se tornando cada vez mais intenso.5 de maio Terça-feira, céu límpido. Fez muito calor na noite anterior e muitos sofreram com isso. 
6 de maio Quarta-feira, céu límpido. Houve um foguista que esbravejou soltando palavrões na noite passada. É mister tomar cuidado, embora seja uma pequena ocorrência durante a calma em que transcorre a viagem.
7 de maio Quinta-feira, céu límpido. Consta que houve inquietação tanto da parte do foguista de plantão como entre os imigrantes.

Nota do bloguista : supostamente o foguista teria tentado adentrar nas cabines dos imigrantes à noite, com o intuito de atacar as mulheres

15 de maio Sexta-feira, céu nublado
16 de maio Sábado, céu limpo. Desde o dia 13, sentimos o sopro do vento meridional e o navio tem balançado muito; e muitos estão com enjôo.

17 de maio Domingo, chuvas fortes esporádicas
18 de maio Segunda-feira, céu limpo. Sopro de brisa fresca a partir deste dia. Pouco balanço no navio. Temperatura quente.
19 de maio Terça-feira, céu limpo
20 de maio Quarta-feira, metade do dia chuvoso
21 de maio Quinta-feira, céu limpo
22 de maio Sexta-feira, céu limpo

23 de maio Sábado, céu limpo\
24 de maio Domingo, céu limpo. Avistou-se, à tarde, a ilha de Mauricio* , possessão inglesa.\
25 de maio Segunda-feira, nublado. Vimos pela manhã a ilha de São Reunião *. O diâmetro é de cerca de 30 milhas e disseram que produziam cana-de-açúcar.


Ilhas Reunião e Mauricio, citadas no diário de Mizuno


26 de maioTerça-feira, céu limpo
27 de maio Quarta-feira, céu limpo. Avistou-se a ilha de Madagascar pela manhã.
28 de maio Quinta-feira, céu limpo. Verificou-se nesta noite que a esposa de Motonao Ohno esteve desaparecida por cerca de cinco horas.

Nota: a notícia de que Matsuko Ohno, esposa de Motonao Ohno, teria desaparecido por cerca de 5 horas foi levada ao conhecimento de tripulação e demais passageiros do navio através de Masako, esposa de Takashi Nihei, e o fato provocou uma grande confusão. Soube-se mais tarde que ela se encontrava numa das cabines de classe superior.


6 de junho  Sábado, céu límpido
7 de junho Domingo, dia meio nublado com vento
8 de junho Segunda-feira, céu límpido com vento. Neste momento, o navio balançou muito e objetos que estavam nas estantes chegaram a cair.
9 de junho Terça-feira, céu límpido
10 de junho Quarta-feira, céu límpido
11 de junho Quinta-feira, céu limpo com pequenas ondas
12 de junho Sexta-feira, céu límpido
13 de junho Sábado, céu meio nublado
14 de junho Domingo, céu límpido
15 de junho Segunda-feira, céu límpido. Houve festa ontem à noite. Tarde da noite, um foguista de mau caráter quis me atacar, mas foi impedido por foguista de patente superior, que acabou sendo apunhalado por seu subordinado.
(Nota do autor : a falta de vontade de Mizuno em escrever era tão grande que ele sequer relatou este episódio, como conteram o foguista; não descreveu o estado de saúde do apunhalado, etc)
16 de junho Terça-feira, céu límpido
17 de junho Quarta-feira, céu límpido
18 de junho Quinta-feira, céu límpido. Chegada ao porto de Santos às 9h. Atracação no cais às 17h. Total da distância navegada - 12.000 milhas marítimas.
19 de junho Sexta-feira, céu límpido. Os imigrantes acordaram às 3:30, se alimentaram às 5h e às 7h partiram rumo à Hospedaria dos Imigrantes em São Paulo. Todos estavam tranquilos e não havia nenhum doente. Efetuou-se o procedimento de envio de cargas de fogos de artifício para o Rio de Janeiro e rumei para São Paulo às 16h30.
(Nota do autor : 1. é provável que, para economizar na hospedagem, a pernoite da chegada (18 junho) foi no navio, já atracado no cais do porto  2. "... envio de cargas de fogos de artifício para o Rio de Janeiro", alem dos imigrantes, Ryu Mizuno aproveitou para ganhar uns trocados trazendo esse material perigoso, explosivos a bordo)

Chegada a São Paulo às 18h30, hospedando-me no Grande Hotel. O intérprete oficial, Arajiro Miura, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e três especialistas em fogos de artifício estiveram junto.

Fomos recebidos pelo sr. Takeo Goto, da Casa Fujisaki, que nos acompanhou a partir de então. Telegrafei à noite para o ministro Uchida (da Embaixada do Japão no Rio de Janeiro). Telegrafei à Casa Matriz (em Tóquio).

20 de junho Sábado, céu límpido. Nesta data, o presidente do Estado visitou a Hospedaria dos Imigrantes. O ex-secretário Arruda Botelho, acompanhado de Bento Bueno, também visitou a hospedaria. Todos os imigrantes estiveram bem comportados. Nada houve que os desabonasse.
21 de junho Domingo, céu límpido. Visitei nesta data a Hospedaria dos Imigrantes, juntamente com a tripulação do navio, acompanhado de diretor de assuntos administrativos do navio (Kenzo Fuse) e o chefe da casa das máquinas (Tatsumi Iijima). Todos ficaram impressionados com as instalações da hospedaria.

22 de junho Segunda-feira, céu límpido. Visitei a Hospedaria dos Imigrantes. Vieram quatro marinheiros desertores da tripulação. Entreguei-os aos encarregados da hospedaria e telegrafei o fato. À noite, vieram o chefe da casa das máquinas, Sr. Iijima, e o sr. Ichiro Kanazawa (professor da Escola de Línguas Estrangeiras e intérprete do navio).

23 de junho Terça-feira, céu límpido . Estive na Hospedaria dos Imigrantes pela manhã. Entreguei os desertores para o tripulante que veio recebê-los. À tarde, audiência com o presidente do Estado.

Imigrantes descendo do Kasato Maru
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Mizuno encerra o diário sem nos relatar que fim foi dado ao foguista louco, que esfaqueou o colega. Também não relatou o estado de saúde do esfaqueado, ao final da viagem.


O Kokai Shinbum (“Jornal da Travessia” do Kasato Maru)


O relato da viagem do Kasato Maru poderia ter um fantástico registro. Entre os emigrantes a bordo, figurava Rokuro Koyama, um rapaz de 23 anos. Ele iniciou a publicação um pequeno jornal, a bordo do Kasato. Ele fazia tudo : entrevistava, ilustrava, redigia, etc. Não sei ainda se este trabalho tinha reprodução gráfica (tiragem, que poderia na época ser feito com mimeógrafo) ou se era um jornal mural (cópia única fixada em uma parede). Entretanto, na terceira edição, Koyama cometeu uma gafe. Ele fez chacota aos carecas a bordo, e isso causou um grande desconforto. Fez bullying. O representante da empresa de emigração, funcionário de Ryo Mizuno, Shuhei Uetsuka deu-lhe uma reprimenda. Aborrecido com a bronca, Koyama abandonou a brincadeira, e assim perdeu-se uma grande chance de existir uma pequeno e divertido registro da viagem.

Mas, Koyama saiu lucrando nesta história. Apesar da bronca, acabou fazendo amizade com Uetsuka. Este convidou-o para ser funcionário da empresa de emigração. Sem vocação para pegar a enxada, Koyama aceitou o convite, evitando assim o árduo trabalho na lavoura.

Mas, eu tenho a minha suspeita : sendo Uetsuka funcionário da empresa de emigração encarregada do Kasato Maru, Uetsuka deve ter ficado preocupado em Koyama passar a escrever sobre os problemas e falhas da travessia,  prejudicando a imagem da empresa. Se Koyama fosse um reacionário, um incendiário, poderia até causar desestabilização a bordo. Por isso, Uetsuka, por precaução, censurou-o, e para vigia-lo de perto fez amizade com ele.

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